DECIFRANDO O REBAIXAMENTO DO SÃO PAULO EM 1990
Por Felipe Virolli

Sou pesquisador e historiador do futebol brasileiro há bastante tempo e, sem dúvida alguma, este é o caso polêmico mais difícil de ser explicado - que eu tenha conhecimento. Aliás, todos os outros casos eu nem considero como polêmicos, pois a verdade dos fatos nunca está escondida para quem procura entender o que, de fato, aconteceu. Ou melhor, a verdade quase nunca está escondida, pois quando nos referimos ao Campeonato Paulista de 1990 - no qual o São Paulo futebol Clube supostamente foi rebaixado -, acredite, ela está escondida, disfarçada, camuflada ou coisa parecida.
Muitos “especialistas” em futebol já analisaram o caso, e praticamente “todos” têm razão – tanto os que consideram que o São Paulo foi rebaixado, quanto os que garantem que não foi.
Mas calma aí, existe mais de uma verdade sobre um fato?
A resposta é “não”. Embora possam existir diversas versões para um mesmo fato, a verdade é sempre única. No entanto, conforme mencionei anteriormente, esse caso específico do Campeonato Paulista de 1990 é bastante complexo. E para comprovar a veracidade dos fatos, é preciso analisar muito mais que simplesmente uma frase do regulamento do torneio ou uma matéria de jornal.
Nesta reportagem vamos analisar tudo o que for possível e vasculhar os arquivos do futebol em busca da verdade – principalmente num caso como esse, em que ela está “escondida”.
Para entendermos todo o contexto e o que levou a Federação Paulista de Futebol (FPF) a fazer um regulamento pra lá de confuso em 1990, vamos voltar um pouco no tempo.
- Campeonato Paulista de 1986:
O torneio contou com a participação de 20 clubes e exatamente o mesmo regulamento do ano anterior, ou seja:
- A primeira fase em que os vinte clubes jogavam todos contra todos, em turno e returno;
- Cada turno tinha a contagem de pontos independente, e o primeiro colocado de cada um deles classificava-se diretamente para as semifinais – juntando-se aos outros dois times que acumularam mais pontos (na soma dos turnos) durante a primeira fase.
- Caso um mesmo time terminasse na primeira colocação nos dois turnos, seria campeão estadual automaticamente – sem a necessidade da disputa das fases semifinal e final.
Rebaixamento: Os dois últimos colocados (que neste ano foram Comercial e Paulista) na soma de pontos dos dois turnos foram rebaixados para a Segunda Divisão (nome oficial da segunda divisão do futebol paulista), enquanto outros dois clubes desta (Bandeirante e Noroeste) foram promovidos para a Primeira Divisão de 1987.
- Campeonato Paulista de 1987:
Aqui começa uma série de “bagunças” no futebol paulista. Neste ano, a FPF “inventou” a criação de uma divisão intermediária entre a Primeira Divisão e a Segunda Divisão. O nome dela: Divisão Especial. Portanto, a Primeira Divisão continuaria sendo a primeira divisão, mas a Divisão Especial seria a segunda divisão e a Segunda Divisão passaria a ser a terceira divisão.
Como seria formada a Divisão Especial?
Segundo o jornal Folha de São Paulo publicou em 1987, "a Divisão Especial (ou Intermediária) deve ser implantada este ano. Ela será composta pelos quatro rebaixados da Primeira Divisão e os escolhidos por torneio seletivo da Segunda”. Ou seja, em 1987 a FPF já dava mostras de como pretendia agir para reduzir o número dos participantes de determinadas divisões – inclusive a primeira. E essa tal Divisão Especial foi mesmo criada exatamente desta maneira, conforme apurou a Folha de São Paulo. Comercial e Paulista, rebaixados na primeira divisão de 1986, conseguiram vaga na Divisão Especial – pois se permanecessem na Segunda Divisão, na prática estariam na terceira.
Vale ressaltar que os clubes integrantes da Segunda Divisão que não conseguiram se classificar na seletiva para a Divisão Especial acabaram, na prática, rebaixados para a terceira divisão - afinal, a Segunda Divisão, a qual eles pertenciam, tornou-se a legítima terceira divisão.
Para se ter uma idéia do resultado dessa idéia mirabolante, em 1986 participaram da Segunda Divisão (nome da verdadeira segunda divisão na época) 55 clubes. Com a criação da Divisão Especial (nome oficial da verdadeira segunda divisão a partir de 1987), o número foi reduzido a 28 equipes. Ou seja, mais de 30 clubes foram rebaixados da segunda para a terceira divisão de uma só vez.
Primeira Divisão de 1987:
Nesta edição, o torneio começou com apenas uma significativa diferença em relação ao regulamento dos anos anteriores: Com a intenção de reduzir o número de participantes do Campeonato Paulista seguinte (1988), a FPF aumentou para 4 - ao invés de 2 - o número de clubes rebaixados para a recém-criada Divisão Especial.
Durante o torneio, o Corinthians fazia péssima campanha e, após 13 jogos do primeiro turno, seu presidente, Vicente Matheus, declarou que o Corinthians não seria rebaixado de jeito nenhum, mesmo que terminasse a competição entre os quatro últimos colocados – cujo regulamento previa rebaixamento.
Embora ninguém pudesse prever quem seriam os quatro rebaixados, fato é que houve uma espécie de “virada-de-mesa” durante a competição. Isso mesmo! A FPF alterou o regulamento do torneio em andamento, e o número de clubes rebaixados voltou a ser 2.
No final das contas, o Corinthians nem precisou dessa “ajuda”, pois se recuperou no torneio e, mais do que isso, foi “campeão” do segundo turno, se classificando para as semifinais, onde eliminou o Santos em dois jogos – sendo um deles por goleada - e só perdeu o título para o São Paulo na final – com derrota por 2 a 1 e empate por 0 a 0, respectivamente.
E o rebaixamento?
Ponte Preta e Bandeirante ficaram nas duas últimas colocações e foram rebaixados (para a Divisão Especial). Já o Novorizontino e o América se livraram, graças à mudança de regulamento durante o torneio.
Os dois clubes oficialmente rebaixados – Ponte Preta e Bandeirante – decidiram ir à Justiça, em busca de uma nova “virada-de-mesa”, que no caso poderia garantir a permanência de ambos na Primeira Divisão. Chegaram a obter vitória em primeira instância, mas no fim das contas, tiveram de se conformar com o rebaixamento.
- Campeonato Paulista de 1988:
Já com um regulamento diferente, em que dividia os 20 clubes aleatoriamente (basicamente de modo regional) em dois grupos com 10 equipes cada, o Paulistão de 1988 começou de uma maneira atípica.
Ponte Preta e Bandeirante, que haviam sido rebaixados no ano de 1987, teriam que disputar Divisão Especial - segunda divisão - do futebol paulista, mas ambos entraram na justiça comum e conseguiram uma liminar para serem incluídos na primeira divisão de 1988, que passaria a contar com 22 equipes.
Vários clubes boicotaram os dois times, não entrando em campo para jogar contra eles. A justiça desportiva acabou derrubando a liminar da justiça comum e retirou essas equipes que haviam sido rebaixadas no campeonato anterior – e o campeonato oficialmente passou a contar com 20 clubes.
Para piorar a situação de Ponte Preta e Bandeirante - além deles serem excluídos da Primeira Divisão de 1988 -, a Divisão Especial já estava em andamento e ambos só puderam retornar a campo pelo torneio estadual na própria Divisão Especial - segunda divisão - em 1989.
Durante este período conturbado, para tentar acalmar os ânimos, a FPF estabeleceu que não haveria rebaixamentopara a Divisão Especial nos torneios seguintes (de 1988, 1989 e 1990).
Sendo assim, não houve rebaixamento para a Divisão Especial nesta edição.
- Campeonato Paulista de 1989:
Como não houve rebaixamento na edição anterior, o Paulistão de 1989 contou com a participação de 22 clubes – sendo que dois foram promovidos da Divisão Especial. Quanto ao regulamento, foi praticamente o mesmo do ano anterior – dois grupos de 11 clubes distribuídos basicamente de modo regional.
Também não houve rebaixamento para a Divisão Especial nesta edição, conforme prometera a FPF.
- Campeonato Paulista de 1990:
Ainda em Outubro de 1989, preocupada com o número cada vez mais alto de participantes no Campeonato Paulista da Primeira Divisão – seriam 24 na edição de 1990 -, a FPF resolveu agir maquiavelicamente – de maneira semelhante como quando criou a Divisão Especial - e decidiu não mais distribuir os clubes aleatoriamente/regionalmente, mas sim dividi-los em dois grupos (denominados inicialmente de A e B, respectivamente, conforme imagem abaixo).
Conforme noticiado pela Folha de São Paulo (imagem acima), o formato do torneio – aparentemente apenas confuso - se confirmou. O Grupo I - e não mais Grupo A, como estava previsto - foi mesmo formado pelos 12 times mais fortes – que participaram da segunda fase - do campeonato anterior: São Paulo, São José, Corinthians, Bragantino, Palmeiras, Portuguesa, Guarani, Santos, Internacional de Limeira, Mogi Mirim, União São João e Novorizontino.
O grupo II – e não mais Grupo B, como estava previsto - foi mesmo formado pelos times teoricamente “mais fracos”: XV de Piracicaba, Noroeste, Santo André, América, Catanduvense, Ferroviária, Juventus, Botafogo, XV de Jaú e São Bento (que terminaram do 13º ao 22º lugares em 1989), mais Ituano e Ponte Preta, vindos da Divisão Especial (nome oficial da segunda divisão na época).
Note na imagem do jornal acima que essa fórmula claramente visa privilegiar os melhores times - especialmente os do Grupo I, que teoricamente são os mais fortes. Na primeira fase, 12 equipes garantem vaga para a fase seguinte: os três primeiros de cada grupo e mais os seis melhores na classificação geral. Se no Grupo I estão os clubes mais fortes, mas a primeira fase é disputada "todos contra todos dentro e fora do grupo de origem", era perfeitamente possível que essas seis vagas restantes fossem preenchidas pelos clubes do Grupo I - ficando o Grupo II com apenas três representantes.
Além disso, os clubes eliminados na primeira fase - tanto do Grupo I quanto do grupo II - ainda teriam outra chance.Na repescagem ainda seriam distribuídas mais duas vagas para a próxima fase. Ou seja, era possível que, das 14 vagas para a próxima fase, 11 fossem garantidas por clubes do Grupo I, que iniciou a competição com 12 equipes.
Essa formação de grupos - visando separar os melhores dos piores times -, aliada a um regulamento que continuava prevendo não haver rebaixamento para a Divisão Especial (ver imagem abaixo), foi mirabolantemente desenvolvida para instituir, no ano seguinte, mais uma divisão intermediária. Desta vez, entre a Primeira Divisão e a Divisão Especial.
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